segunda-feira, 6 de setembro de 2010

LEMBRANDO DAMASCO

Viajar não é simplesmente comprar passagem, reservar hotel e ter a lista dos monumentos. Muito mais de que isso: é aprender a esquecer seus egos, suas referencias cotidianas. Deveria existir um código de comportamento do viajante. Seja curioso e generoso. Desaparecer na multidão, se confundindo no mais total anonimato com seres humanos que são, afinal, tão parecidos com você. Nem sempre é fácil, eu que o diga, já que mesmo pretendendo ser discreto, vestido de camiseta e jeans, tudo trai meu “estrangeirismo”. Altura, óculos de sol, chapéu protegendo a careca, forma de andar até, terminando pela câmera, tudo grita que não sou daqui.

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Depois da vênia ao Bakdash, lá vou eu mergulhando no dia a dia dos sírios e nos tesouros de sua história. Algo que surpreende o mais distraído dos turistas é o número de livrarias. Desde prosperas lojas até ambulantes, a variedade de ofertas impressiona.




Divirto-me também a notar os cartazes, expressão mais fiel da atualidade e da cultura.
E aqui até as religiões ilustram as paredes do labirinto onde me perco sem receio desde que sai do souk. Espiritualidade ostensiva. Haverá sincretismo aqui também?





Tentei por várias vezes obter informações para ouvir música síria tradicional, não consegui. Alguns chegaram a afirmar que é mais fácil ouvir os melhores músicos locais em Paris, Nova-Iorque ou Londres. Em contrapartida fui mais de uma vez ao cinema, nunca permanecendo mais de quinze minutos. Porque? Bem... Vamos dizer que é porque não entendia a língua... Mas a entrada não custa mais que dois ou três reais.



Passo pela suntuosa mesquita dos Omeyyades, uma das mais veneradas do mundo islâmico, mas prefiro continuar vagando pelas ruelas. Mais tarde ou outro dia irei visitá-la... Por enquanto, abandono meus mapas, pois cheguei à conclusão que perder-se também seria ótima forma de conhecer a cidade...

A sensação de segurança é tal que só a fome me fará procurar a volta ao centro. Outras mesquitas salpicam o bairro, algumas escondidas por traz de simples muros, anunciadas por uma fonte cercada de grade trabalhada, pois esta água é reservada para estancar a sede e não para encher o garrafão ou lavar os pés. Não esqueçamos que á água é preciosa nesta terra onde o deserto ocupa grande parte do território. Então mármores, mosaicos minuciosos e ferros lavrados são a melhor forma de lembrar o quanto precisamos dela.

Seria fastidioso respeitar uma rigorosa cronologia. Prefiro enunciar minhas impressões ao acaso da lembrança. Ruelas estreitas pontuadas de arcos, alternância de estilos onde não faltam resquícios de colunas romanas ou mosaicos bizantinos. Algumas fachadas antigas revelam a riqueza de seus donos pela elegância do entalhe de pedra, a marquetaria de mármores coloridos, a porta longamente trabalhada e cravejada de ferros ou bronzes. Capitéis, colunas ou arcos romanos pontuam cada passo, cada pátio entrevisto pelas portas semi-abertas. Vários palacetes estão sendo restaurados com cuidado, geralmente para serem transformados em pousadas de luxo. Mas como tudo aqui é muito barato, um belo quarto numa destas residências não ultrapassa uns cem euros, com direito a 
tratamento de pashá.

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À medida que vou escrevendo e colocando ilustrações no relato, temo apresentar mais um álbum de fotos que um diário de viagem. Mas talvez seja a melhor forma de não cansar o eventual leitor.


Esta primeira parte da descoberta da Síria será, para mim, em regime de solidão. Ninguém para compartilhar meus entusiasmos nem minhas refeições. O lado positivo é poder usar de meu tempo sem receio de fastidiar quem me acompanharia. Gosto de voltar aos museus ou mesquitas que me seduziram numa primeira visita, de sentar por horas nos mesmos cafés, lendo, escrevendo meu diário ou simplesmente olhando a multidão passar. Posso perder o rumo á vontade e, de repente, me encontrar fora das muralhas numa estrada sem a mínima graça, poeirenta, salpicada de postes e de montes de lixo. Já me aconteceu mais de uma vez. Faz parte.

Sem demora, reencontrarei as vielas secretas e sombreadas, as pracinhas com orgias de jasmim e bougainvíleas. Sem dar por isso, passei do bairro muçulmano ao cristão e armênio. Os finos minaretes foram substituídos pelas leves torres e suas cruzes.
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Muitos criticarão, com razão, a ausência da estrela de David nas religiosidades sírias. É verdade, e é lamentável. Resultado de extremismos de ambas as partes. Mas, pelas conversas que tive durante estas semanas, estou convencido que, quando a paz for, enfim, instalada entre Israel e Palestina, os judeus voltarão sem demora neste belo país. Afinal, muito pior aconteceu na Alemanha, e lá estão eles de volta, com todas suas tradições e rituais, contribuindo ativamente a melhorar a sociedade, nas artes, nas ciências e na economia. Encontrei vários palestinos e, com freqüência, me impressionei com sua inteligência, educação, coragem para enfrentar uma vida tragicamente desenraizada e empenho em trabalhar. Alem disso é um povo de físico semita especialmente belo, como prova a deslumbrante rainha Nour da Jordânia.



Enquanto na parte islâmica havia rebanhos de peregrinos iranianos, todos rigorosamente vestidos de preto na cabeça aos pés, a partir da porta romana dita Bab Al-Kanise, encontrarei muitas mulheres vestidas a ocidental, se bem que nunca de saia curta, mas com calças e cabelos soltos. Mesmo os mais céticos ficarão impressionados ao descer os degraus toscos da minúscula capela de Santo Ananias, construída no século IV, onde não cabem mais de três ou quatro bancos e um batistério românico. Ao andar pelo emaranhando urbano, o olhar é constantemente atraído, no chão, nas paredes ou nas alturas, por detalhes arquitetônicos que marcam a longa história da cidade. As ruas podem ser ás vezes tão estreitas que os andares superiores chegam a quase se tocar.
                              

Esta é uma rua banal (!) do velho centro de Damasco. Pode passear sem medo. A segurança é total. Como ela, milhares de outras. Mas qualquer uma desta portas baixas e estreitas pode esconder um palacete, com seu pátio onde canta uma fonte, plantas e árvores frutíferas. São frescos no verão e protegidos dos rigores do frio invernal. A alternância de listas pretas e brancas na decoração é uma constante na cultura síria. Como também podem constatar pela sombra, esta foto foi tomada perto do meio-dia e a rua está praticamente limpa. E nunca, jamais, você verá um homem urinando na rua, em público. Seria levado a delegacia sem tardar e preso. Para estas necessidades existem sanitários públicos pagos, vigiados e limpos por funcionários municipais. Imaginem a esculhambação que seria esta medida aplicada na Bahia?


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