quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Cuisine

Modernos versus Antigos. Sempre a mesma história.
Ciclicamente voltam as polêmicas, os argumentos contra, a favor e no entanto. Vejam por exemplo o simples (?) domínio da comida. Perdão: da gastronomia.

Quem conheceu outras épocas se lembra do reinado da cozinha, onde só entrava quem algo de especial tinha a fazer por lá. Era terreno sagrado da cozinheira que tanto podia ser uma muito respeitada empregada como alguém da família: mãe, avó ou tia. Raramente os homens se arriscavam, senão para beliscar fora do horário. Coisas do passado. Hoje o homem é quem geralmente domina o chão sagrado do forno e fogão. Até a próxima reviravolta.
No final dos anos 60, um tsunami imaterial levou para a gaveta do ostracismo velhas receitas e formas de fazer. O bechamel, por exemplo, ficou apedrejado, banido. Não se pode mais tocar na farinha para engrossar caldo. Tem que ficar ralo, mesmo. Estamos falando da Nouvelle Cuisine que, como indica a expressão, nasceu na França, lá pelos lados de Dijon, Lyon... Ou seja, à beira dos Bourgogne, vinhedos famosos e concorrentes históricos dos Bordeaux. Outro tipo de guerra.
Bem, não pretendo mergulhar nestas brigas, mas contar como, sentado, manhã de sol, numa cadeira do sorveteiro Laporte, hoje de reputação nacional - que me perdoam os ribeiras, perinis e outros cubanas - acabei criando uma situação de hostilidade aberta com um desconhecido recém chegado.
Este, compatriota meu, logo começou a contar vantagem sobre sua supremacia no preparo do couscous marroquino. Não confundir, por favor, com o delicioso cuscuz nordestino. Nada a ver.
Ora, amigo leitor, não sou cozinheiro, mas algo entendo de gula. E quando se trata de culinária marroquina, estou em casa. Tive, naquele dia, a ousadia de proferir uma observação sobre o absurdo dos restaurantes franceses que propõem, por razões puramente econômicas, “Couscous á la Royale” ou “Couscous Impérial” conforme tenha carneiro, frango, os dois etc. Tais definições não existem nem em Marrakesh, nem em Casablanca, nem em Tanger. Conheço sim, o couscous dos sete legumes e ossos, o couscous com passas e grão de bico, com cebola e mel etc. Quem quiser, pode conferir no excelente livro de Latifa Bennami-Smirès.
Ai! Tinha colocado meu pezão em terreno reservado, propriedade do dito.
“Pois eu afirmo que se pode muito bem fazer muitas outras coisas, ninguém é obrigado a seguir receitas, tenho direito de inventar...” De repente estava armado o barraco. Escolhi baixar a cabeça e deixar a tormenta passar.
Vamos deixar o homem em paz e divagar um pouco sobre o assunto.
É evidente, ninguém nega, que cada um pode usar os ingredientes disponíveis no mercado como bem entende e elaborar até as mais esdrúxulas combinações a partir de qualquer tema. Nestes últimos 50 anos, uma longa lista de grandes cozinheiros não somente franceses, mas também italianos, espanhóis, americanos (mais raros) e, recentemente, brasileiros, têm enriquecido os prazeres do paladar com variedade inesgotável de criações que são para muitos gourmets tão poderosas quanto o ópio mais forte da antiga Pequim.
Gastronomia tem duas vertentes. De um lado existe o patrimônio - tipo Louvre - perene, histórico, que não permite improvisar acima de um Lièvre á la Royale, uma moqueca de siri ou Tagliatelle alle vongole e, de outro lado, a livre criatividade - mais para Guggenheim - esta sim, direito de cada um. Mas se você colocar champignons no seu vatapá, creme de leite no Boeuf bourguignon ou patê no ensopado, não venha com este negócio de tradição. Mude o nome do prato. Um cassoulet se faz com feijão branco e ponto final. Se for fradinho, esqueça o termo e encontre outra definição. Encomendou frango de cabidela? Você já sabe a composição e o gosto do prato que vai chegar à sua mesa.
O ideal é ter as duas categorias, de forma a que você possa escolher entre Frutos do Mar a Tiffany - um pedaço de lagosta, dois filês de badejo, três camarões artisticamente arrumados numa cama de arroz selvagem molhado com polpa de uva doce, o conjunto apresentado em amplo prato quadrado - e a Bouillabaisse a la marseillaise, generosamente servida fumegante em prato de barro. A escolha é sua.
Na realidade, uma cozinha não elimina a outra.
Tempestade num copo de vinho? Não. É assunto sério. Trata-se de memória, de ancestralidade, de respeito á cultura herdada.
E não venha meter a colher no meu pirão, por favor!

Dimitri Ganzelevitch Salvador,
28 de setembro de 2009.

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