segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Seu Jorge bota a boca no trombone

Coloquei este desabafo no "Garimpo musical" Ja que de música se trata. Tive pouca informação dos bastidores do departamento musical do TCA durante estes quatro anos, mas nunca fiquei convencido com a bela cabeleira do Ricardo Castro e por várias vezes ouvi comentários azedos sobre a realidade do Neojibá. A mudança me parece salutar. Já passou da hora de entrar na produção musical do século XXI!!

Quem achou (eu) que ouviria os costumeiros Adeste Fidelis e Panis Angelicus, no concerto de natal do TCA, acabou ouvindo o ribombar do trombonista, que falou sem microfone, de pé, quase caindo do palco, de tão perto da platéia e de tão cheio de físico, depois do pronunciamento pálido e cínico do tão sofisticado e elegante diretor da Orquestra Sinfônica da Bahia, o excelente pianista e péssimo gestor, Ricardo Castro.
Farei suspense para que o leitor de internet vá além da fofoca e da notícia.
Marcado para o dia 17 de dezembro, portanto, quinta-feira da semana passada, o concerto de natal do TCA pretendia fechar o ano, como sempre, numa confraternização entre platéia e músicos da OSBA. O teatro quase lotado evidenciava a presença de um público “inexperiente”, movido pelo convite, não pelo ingresso. Jovens usando as roupas mais excessivas do mundo, mulheres com vestidos de madrinhas, homens com ternos de padrinhos ou mesmo noivos, e os gestos todos desengonçados, de pés atravessando o Pelourinho de salto alto. Atrás de mim, senhoras falavam que não era possível desperdiçar os convites que receberam da empresa em que trabalham, afinal, jogar fora convites?
Escolhi a segunda fileira, na parte central da platéia, mas pouco depois me levantei, desistido: uma criança de prováveis 8 anos, na primeira fila, logo a minha frente, fazia estardalhaço, ouvia Mp3, se levantava com a característica inquietude do infante em locais aparentemente solenes, austeros, rigorosos. Eu não entendo por que não há censura para concertos de música orquestral no TCA. Uma criança pode – isso já aconteceu comigo mais de uma vez –, sem qualquer dúvida, comprometer a execução e fruição de uma sonata, uma suíte, uma sinfonia. Tanto pelos ruídos que causa quanto pelos movimentos estouvados e imprevistos. E é um tal de falar com a mãe sobre isso e aquilo, sempre em volume mais alto que os solistas. Escusado dizer que a culpa é dos pais, não da criança. Se o pai não tem noção do que seja um concerto de música orquestral, que a casa de espetáculo imponha uma censura para menores de idade.
O programa era muito atraente, ou mesmo excitante. A abertura de Norma, de Bellini; a ária “Povero Ernesto”, da ópera Don Pasquale, de Donizetti; a Ave Maria e o Guarani, ambas de nosso Carlos Gomes; o intermezzo e a ária de Manon Lescaut, “Solo perduta e abbandonata”, de Puccini; a ária “Morro, ma prima in grazia...” da ópera Un ballo in maschera, de Verdi, com seu Te Deum. A regência ficou a cargo do maestro italiano, radicado na Bahia há mais de trinta anos, Pino Onnis – a criatura com mais cara de giuseppe no mundo.
Antes de começar, o diretor da OSBA, Ricardo Castro, aparece ao palco, microfone ligado, papel na mão, e começa a ler um texto de breve despedida. Com rara deselegância, o solerte desfiou um rosário de lágrimas, tirando a bunda da seringa quanto aos problemas enfrentados pela nossa orquestra. Lavando roupa suja num concerto de natal, antes mesmo de o concerto começar, causando no público a sensação de que ouviria, em breve, um berimbau desafinado. Afinal, Ricardo Castro, apenas com palavras, tentou provar quanto andava caindo das pernas a OSBA, quanto havia de problemas com os músicos, falta de contratação de bons profissionais etc. Em petição de miséria, aquela orquestra diante de nós. Ricardo Castro finalizou sublinhando que ele esperava que o próximo gestor pudesse resolver ao menos parte dos tantos problemas etc. etc. etc. E desceu do palco, as costas queimando – se olhasse para trás virava sal.
Eis que surge, do fundo, numa corrida de Clark Kent à procura de uma cabine telefônica para trocar de roupa, um homem corpulento, de traços indígenas e com um trombone na mão. O sopro ainda na boca, fala sem microfone:
- Isso que ele acabou de falar não é verdade.
Pronto, é o guarani, pensei. A ópera começou. Pensei errado, no entanto. A criatura em questão era o principal trombonista da OSBA, Sr. Jorge Alves Dias, que parecia falar o que toda a orquestra desejava falar e não tinha coragem para tanto. Naquele instante me ocorreu o Ensaio de Orquestra, de Fellini.
Jorge Alves Dias falou tudo – ou quase tudo – sobre a falácia do discurso do diretor da orquestra baiana. Quem precisa de microfone num teatro? Baianos suíços, talvez. O trocadilho é inevitável: Jorge Alves Dias botou a boca no trombone, reafirmando a qualidade de uma orquestra com quase trinta anos de idade, muito trabalho e seriedade, e uma péssima gestão do finíssimo Ricardo Castro. A pobre da violinista gordinha, muito jovem, não sabia onde colocar a cara: escolheu colocá-la atrás da mão direita. A spalla se levantou e saiu do palco, em direção à coxia. Ouviu-se até que o Ricardo Castro jamais fora o criador da Neojibá! Revelações de final de novela da Globo. Um ar mais ou menos mórbido me causou a impressão de ter ouvido a famosa gargalhada de Caruso, em Vesti La Giubba... O trombonista fechou seu discurso com um “viva a orquestra sinfônica da Bahia”, e foi ovacionado. O público estava diante de uma ópera-rock.
Pronto, contada a notícia, a fofoca, o furo jornalístico a Truman Capote, os leitores podem descansar suas retinas. No intervalo, me levantei e, quando seguia ao saguão – caramba, isso que escrevi agora parece um trava-língua... –, vi um Ricardo Castro quase fagueiro, numa das últimas filas da parte de baixo do teatro, pernas cruzadas, conversando amenidades com um jovem desconhecido, como se já esperasse a reação do trombonista. Certamente houve discussões e apupos na coxia, pouco antes dos músicos entrarem no palco. Mais adiante, em meu caminho ao banheiro, uma jovem senhora falava: “ele é um grande pianista, mas um péssimo gestor e um mau-caráter de primeira”.
A presença do coro da ALBA (Associação Lírica da Bahia, fundada em 1982, sem fins lucrativos) quase afundou a parte musical do espetáculo. Frouxa, parecia fazer da melodia uma bola de vôlei em roda de criança. Tudo oscilava naquelas bocas de todas as idades. A bola caía na areia de minuto em minuto. O jovem tenor Sandro Machado deu conta de sua ária, “Povero Ernesto”. O baixo Guilherme Hübner, no entanto, na “Invocazione” de Carlos Gomes, parecia frio e ausente.
Mas houve uma aparição, um milagre na Baía de Todos os Santos, a Bahia de Jorge Amado: o nome da soprano é Angela Laborda. Não precisou abrir a boca para fazer levantar a platéia masculina, que a aplaudiu de pé, antes de qualquer nota proferida. Laborda parecia um truque de prestidigitação, e esplendia, com seus dois metros de brancura celta – contando com os saltos altos – e o corpo denso, imponente, quase pesado, eu diria. Teria mais de vinte e seis anos? O vestido era uma força viva, no tom predileto das louras, o verde-água. A divindade nórdica quase conseguiu apagar as palavras do corajoso e viril trombonista. Mas certamente fez esquecer a pusilanimidade, o cinza enfadonho e melancólico do pianista que fez as vezes de gestor, nos últimos quatro anos da OSBA.
Como se precisasse, Angela Laborda cantou a ária de Verdi. Pino Onnis recebeu dela, ao final, um bouquet de flores, como de ordinário, em festividades.
O nome da ária que a mitológica soprano cantou? “Morro, ma prima in grazia...”
Henrique Passos Wagner

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