sexta-feira, 3 de junho de 2011

Tuscaloosa, 27 de Abril de 2011, 8:30 AM

Por Antônio Portela Silva (flautista Tota)
Acordei tarde. Fiquei acordado até tarde na madrugada escrevendo minha tese. Estamos nessa etapa final de nossa permanência aqui nos EUA, e os prazos estão se tornando cada vez mais curtos. Teca já terminou a dela, e já entregou o “first draft”. Eu, como comecei tudo mais tarde que ela, ainda tinha o encontro com o meu comitê marcado na quinta-feira, dia 28, para aprovarem ou não a minha proposta de tese. Mesmo sem ter meu projeto aprovado, já tinha começado a trabalhar na tese, já que sei sobre o que vou escrever. Teca levantou cedo. Uma quarta-feira sim, outra não, ela trabalha na Escola de Teatro nas aulas de preparação vocal para os alunos do curso de Teatro Musical. Bill Martin, nosso colega, e para quem ela toca nas aulas, ficou de passar aqui e dar uma carona para ela. Assim, eu poderia ter mais tempo para mim, e adiantar o meu trabalho.  9:15 AM foi quando me despedi dela, e quando a vi pela última vez até o passar dos acontecimentos. Já sabíamos pela previsão do tempo que hoje teríamos tempestade, e a Universidade já tinha emitido um alerta, e enviado e-mails para todos nós.
Passei o meu dia em casa escrevendo, analisando Fantasias de Telleman, e pensando nos rumos do meu trabalho. Estava tão concentrado no que fazia, que nem me dei conta que tinha de ir almoçar. Quando percebi, já eram quinze para as 2 da tarde. Eu tinha ensaio do Coral de Flautas às 3. Parei tudo, peguei minhas flautas, e fui para a escola. No caminho, fui fechado por uma grande picape, que praticamente me jogou fora da rua. Por sorte, tinha um estacionamento, e para não bater, joguei o carro lá. Passei pelo idiota, e ainda briguei com ele. Fui pro meu ensaio, que correu muito bem. Ao final do ensaio, soou o alarme na escola. Estávamos em “Tornado Warning”. Isso significava que existia possibilidade real de um tornado nos atingir. Porém, como acontece na maioria das vezes, essa possibilidade se esvai, e continuamos incólumes. Ainda assim, desta vez a coisa estava bem mais séria do que das outras. Além de soarem os alarmes, mensagens gravadas de voz dando instruções de segurança foram tocadas, indicando para que todos fossem imediatamente para os porões das escolas (que são abrigos). Todos estavam tranqüilos, e agiam como sempre agem nessas situações, levando em conta o padrão dos outros alertas que já sofremos. Eu limpei meus instrumentos, e encontrei-me com minha professora. Ela perguntou se eu ficaria ali, ou voltaria pra casa. Eu pensei em descer para o porão, porém me lembrei de Teca. Eu sabia que ela estaria na Escola de Teatro. Porém, com o alerta, todas as aulas foram suspensas. Eu pensei que, assim com Bill deu carona para ela ir de manhã para lá, poderia ter oferecido carona para voltar, já que não haveria mais aulas. Resolvi que retornaria pra casa para ligar para ela e ter certeza de onde estava. Antes de sair, vi um colega nosso David Saunders, chegando bem aflito com seu cachorrinho no colo. Perguntamos como estavam as coisas, e ele me respondeu:
-Pretty bad!
Outros já tinham comentado que vários serviços na cidade tinham suspendido suas atividades para que as pessoas se abrigassem. Eu e minha professora resolvemos então sair logo, para que pudéssemos estar em casa antes da tempestade nos atingir. Ao ir para o estacionamento, reparei que ele estava quase vazio, em relação à quando cheguei. Ainda assim, via chegar alguns carros de estudantes que foram em casa buscar seus animais de estimação para se esconderem nos porões da escola. Fui para casa. O vento já começava a se alterar, e pelo retrovisor eu podia ver nuvens muito pesadas vindo do poente.  Fui para casa bem rápido.
Pouco antes das 5 PM
Chegando em casa, normalmente eu estacionava o carro em frente ao nosso apartamento. Nesse dia, eu pensei bem, e parei no fundo, pois fiquei com medo de que caísse um galho da grande árvore que tinha em frente à casa em cima do carro. Estacionei, tranquei o carro, e me lembrei de nossa vizinha, Teresa, que morava no apartamento em cima do nosso. Tínhamos um acordo com ela de que, em caso de tempestades, ela poderia vir se abrigar em nosso apartamento, que era mais seguro que o dela, por estar embaixo. Bati em sua porta, mas ninguém respondeu. Imaginei que ela estaria abrigada em sua escola. Entrei em casa, e liguei pra Teca. Porém, antes peguei meu netbook, liguei e acessei a página do Weather Chanel, assim como liguei também a TV nesse canal. Teca atendeu, e estava bem abrigada na Escola de Teatro, que foi construída como um abrigo anti-bombas. Ela reclamou por eu ter ido pra casa, e perguntou por que não ia para a escola. Nesse momento, o locutor do canal do tempo dava sérias instruções para que evitássemos estar na rua, de carro. Ele dizia para que, onde estivéssemos, procurássemos parar o carro, e nos abrigarmos imediatamente. Disse à ela que ficaria em casa por força dessas circunstâncias. Como sempre, o celular de Teca estava com pouca carga, e desligamos. Levantei, e fui tomar minhas precauções, pois não queria ser pego de surpresa. Peguei 3 lanternas muito potentes, sendo que 2 de prender na cabeça[1], como aquelas de mineiros, e mais um grande lampião de “leds” que temos aqui.  Já tinha escolhido um armário que usávamos como despensa, e que ficava literalmente no meio da casa, nos dando um abrigo de pelo menos 2 paredes do lado externo. Botei uma cadeira lá dentro, posicionei o lampião em um local mais alto, botei minhas flautas lá dentro, peguei o “laptop” de Teca (com sua tese), um telefone sem fio, peguei um rádio e carreguei com pilhas[2], e peguei minhas ferramentas. Imaginei que se acontecesse o pior, e por acaso o prédio desabasse em cima de mim, eu teria de “abrir” o meu caminho pra fora. Tinha comigo martelo, alicates, chaves de fenda, duas serras, uma furadeira/parafusadeira elétrica sem fios (carregada), e outra parafusadeira à pilhas. Pensei que seria prudente aumentar os níveis de proteção entre mim e o meio externo. Assim, fechei todas as portas que pude dentro de casa, criando como que uma concha ao redor do armário onde eu me abrigaria. Ainda assim, não acreditava que seríamos atingidos. Naquele dia mesmo conversamos sobre isso, pois a nossa vizinhança era muito antiga[3], e todas as casas e prédios lá estavam. As árvores eram muito grandes, o que mostrava que por anos nenhum tornado as tocou. Eu achava que seria mais uma vez como o que já estávamos acostumados a ver acontecer. Já estava até pensando que, tão logo o tornado passasse que eu sentaria no computador principal da casa para continuar escrevendo minha tese.
Assistindo o canal do tempo, e vendo pela internet, o relato dos repórteres era de que já tinham dois grandes tornados no chão, e já deixava um rastro de destruição assombroso. Um que passava ao Norte da cidade, não oferecendo qualquer perigo à nós, e outro que vinha pelo sul, porém não se encontrava próximo ainda. Pela televisão eu já podia ver as imagens da destruição do primeiro tornado, e eram impressionantes. Uma igreja tivera sua fachada completamente arrancada. Podíamos ver imagens em tempo real, e era muito violento. O repórter ainda falava que o fato de terem 2 tornados poderia ser bom, pois um poderia roubar umidade do outro, enfraquecendo-o.[4] Isso realmente ocorreu. Porém, o tornado que “roubou” umidade do outro, foi aquele que vinha ao Sul, em nossa direção. O tornado que se dirigia ao norte, realmente perdeu força, e se tornou menos destrutivo. Nesse momento, já dava para ver a massa que se aproximava pela câmara externa posicionada em cima de um prédio alto na cidade. Ao mesmo tempo, repórteres das cidades vizinhas enviavam imagens, ou áudio, relatando a dimensão assustadora do tornado, bem como o seu poder de destruição. Várias cidades já tinham sido bem danificadas, ou completamente arrasadas nesse caminho. Restavam-nos apenas alguns minutos antes que ele chegasse ao nosso município.
Teca me ligou mais uma vez, sugerindo que eu fosse para a escola. Eu achei que naquele momento é que seria ainda mais imprudente estar dentro de um carro, dirigindo na direção do mesmo. Eu relatava para ela o que eu via na TV, e eu falei para ela descer para o porão da escola. Essa seria a última vez que eu falaria com ela ainda nessa “dimensão”. Ao desligar o telefone, aproveitei para tomar minhas precauções.
Finalmente, na TV, apareceu a imagem do “funil” formado pelo tornado. Era uma coisa enorme assustadora. O repórter estava visivelmente aterrado. Ele alternava suas análises das imagens produzidas pelo radar, com as imagens reais, e os relatos dos repórteres que estavam próximos da cena de destruição. Foi quando a imagem registrou que o grande tornado se dividiu em 3 tornados paralelos. O repórter então falou:
-“Esse é um grande e único momento na carreira de um repórter do tempo, que eu não gostaria de estar vivendo agora”.
Ele mostrava pelo radar a dimensão hipertrofiada da “debris ball”[5], e pelas imagens a gente via a quantidade de coisas que iam também caindo pelo caminho. A velocidade medida era de 200 milhas por hora[6], o que deixava bem claro porque não é uma boa idéia de tentar “correr” de uma coisa assim dentro de um carro. Pela imagem na TV dava pra ver a largura do rastro de destruição que vinha sendo causada. Ao mesmo tempo em que eu monitorava a nossa situação pela TV e internet, eu estava teclando com uma amiga no em Porto Alegre, e com um amigo de Feira de Santana. Nossa amiga de Porto Alegre me avisou que estava rezando por nós, e que continuaria até quando tudo passasse. Eu descrevia pra ela em detalhes tudo que eu via, e que o repórter descrevia.
Finalmente o Tornado alcançou a nossa cidade. A chuva começou a cair forte, e vinha de lado. Eu me lembrei das plantas que estavam lá fora, e retirei as pequenas, e as que ficavam penduradas, com medo de que caíssem com o vento. Os nossos “mensageiros dos ventos” tocavam violentamente e sem parar. Eu pude ver o movimento de rotação na copa das árvores e não achei nada interessante. Recolhi as plantas rapidamente, e entrei em casa. Segui acompanhando os fatos, e via que a rota do tornado cortava em diagonal, em nossa direção. O reporter ainda imaginava que ele pudesse mudar, e seguir mais ao sul, que seria a rota mais “comum” dos tornados. Porém, ele veio subindo, cortando por dentro da cidade. Os relatos eram assustadores. Eu ouvia os repórteres dizerem nomes de ruas que conhecíamos, e estava apreensivo. Eu teclava com meus amigos dizendo pra eles que estava chegando. Finalmente, eles perderam a imagem da câmara externa, e tudo ficou sendo acompanhado pelo radar, e pelo relato dos repórteres de rua. De repente, o vento parou, a chuva parou... e se fez um grande silêncio lá fora. Eu, na minha pouca experiência, achei que tudo ia se tranqüilizar. Foi quando começou a chover com muita força. A chuva corria de lado. Comecei a reparar que não era apenas chuva, mas tinha também granizo caindo do céu. Relatei isso para nossa amiga gaúcha, que só me respondia com orações. Aí, começaram a cair raios do céu. Vinham em linha reta, diretamente do céu, atingindo o chão, postes, árvores... A recepção das imagens da TV começou a ser prejudicada. Eu mandei a minha última mensagem para nossos amigos no MSN:
-Começou a chover granizo, e os raios estão caindo direto. Eu acho que vamos ser atingidos!
Após isso, a conexão caiu. Fui até próximo à TV para ver se melhorava a recepção. Eu via os raios caindo sem parar, em intervalos de no máximo 2 segundos entre um e outro. Eu os via cair dos lados da casa. O estrondo era muito forte. Foi quando, finalmente, a energia se foi. Sem o som da TV, eu ouvia um ruído fortíssimo da tempestade vindo de fora. Porém, comecei a ouvir outro ruído, como um estalar, ou crepitar. Imaginei que seriam os fios de energia em circuito por dentro das paredes e pensei:
-Tornado e incêndio... ninguém merece!
Procurei identificar de onde vinha o crepitar. Foi quando percebi que o ruído vinha da porta da rua. Botei a mão na porta, e olhei pra fora. Foi quando vi o caos que se abatia sobre o nosso bairro. Via tudo voando! Não via mais chuva, mas areia, e detritos. Entendi então que o ruído, o estalar que ouvia, era a porta sendo empurrada pra dentro, pelo vento! O tal crepitar era o vento passando pelas frestas, e a porta, as dobradiças, fechaduras e portais sendo forçados a arrebentar. Corri imediatamente para dentro do armário, e me tranquei lá dentro, tomando o cuidado de segurar a porta pela maçaneta. Eu já tinha deixado o rádio ligado, e a minha lanterna de cabeça já estava ligada. Porém, eu achei que seria irrelevante ouvir alguma notícia, uma vez que eu é que estava vivendo a notícia naquele momento. Desliguei tudo, inclusive a minha lanterna. Pensei que ficando no escuro eu poderia me concentrar melhor em tudo que eu ouviria ao meu redor, além do que, se algo se quebrasse ao meu redor, abalando a estrutura do meu abrigo, eu poderia ver imediatamente, e poderia tomar alguma atitude. No escuro, eu podia ouvir com clareza todos os ruídos ao meu redor. Foi quando o ruído se tornou imenso e aterrador. Era como um trem, 10 vezes maior que qualquer um que já ouvi, estivesse passando do lado da casa. Eu ouvia ruídos de coisas que se batiam nas paredes externas, ruídos de coisas sendo quebradas e destruídas no lado de fora, sentia tudo tremer. Comecei à ouvir fortes e secos estrondos do lado de fora. Imaginei sendo as árvores e os postes caindo. Ouvi então um estrondo muito forte e seco bem próximo. Identifiquei como sendo uma das árvores da frente que caíra. Pouco depois, outro ruído ainda mais forte, e que fez a casa toda tremer. Ao mesmo tempo ouvi que a porta da frente foi arrombada, e ouvi os vidros das janelas se quebrando. O ruído do lado de fora ficou ainda mais forte, e era como se a tempestade estivesse dentro de casa. Eu ouvia o barulho de coisas voando freneticamente por dentro de casa, e como segurava a porta com as mãos, eu sentia essas coisas se chocando na porta, e nas paredes. Sentia que o vento que circulava dentro do apartamento empurrava a porta com força. Pude identificar que muito do que “voava” por dentro de casa eram pedaços de vidro[7], que se chocavam contra a porta e paredes e se estilhaçavam. Eu imaginei que os estilhaços ainda continuavam voando, multiplicando os danos.
Foi quando percebi que o ruído diminuíra, e que as coisas que voavam por dentro de casa começavam a se “acalmar”. Finalmente, ouvi que o nível de ruído tinha como que voltado ao normal. Tinha se passado apenas de 10 a 15 segundos. Liguei minha lanterna, vi que estava tudo bem em meu abrigo, e pensei:
-É, não foi tão mal assim!
Peguei o telefone para ligar para Teca. Mudo. Claro, se não tínhamos energia, o telefone sem fio não poderia funcionar. Pensei então em usar o telefone de fio que ficava na cozinha, bem em frente ao armário aonde eu me abriguei. Abri a porta, e o carpete do lado de fora estava imundo, tínhamos vidros cobrindo tudo. Pensei logo:
-Tenho de pegar o aspirador-de-pó e limpar tudo logo, antes que Teca veja.
Idiota! Se não temos luz para fazer o telefone funcionar... como vou usar o aspirador? Foi aí que eu ví a cozinha intacta à minha frente. Chutei o que pude do vidro, galhos, folhas e detritos do meu caminho, saí animado para pegar o telefone e ligar para Teca. Mudo! Após botar o telefone de novo no gancho foi que eu finalmente olhei para fora.
Um portal para outra dimensão
Ao olhar para fora pela janela da cozinha, o pensamento que veio à minha cabeça na hora foi:
- Não é aqui que eu moro!
Era como se ao sair do meu abrigo, e tivesse aberto a porta de outra dimensão, como se tivesse ido parar em Narnia. Pouco a pouco fui caindo em mim que, na verdade, o mundo tinha mudado. Aonde estavam as árvores que tínhamos no lado de fora, onde cuidadosamente penduramos 2 comedores para que os passarinhos viessem comer, e nos alegrassem as refeições olhando pra eles? Reparei então que tinha restado apenas metade da maior delas. Ao fundo, tinham vários arbustos, e algumas pequenas árvores, e outras maiores, que nos propiciavam uma barreira natural, nos isolando convenientemente do barulho da Rua 15, além de um visual bucólico no inverno quando ficavam completamente cobertos de neve. Não tinha mais nada! Eu via o céu diretamente! Não tinha uma árvore sequer no horizonte. Olhei mais ao lado... nada! Onde existia o depósito da H. A. Edwards, restava apenas um monte de madeiras, e... lixo! Muito lixo! Muita coisa retorcida, que nem dava para saber exatamente o que era. Foi quando vi nosso carro, e percebi uma janela quebrada. Porém, ele estava lá. Abri a porta e saí pelo fundo. Foi aí que vi um emaranhado de fios do lado de fora. Percebi que os postes tinham sido derrubados, e arrancaram todos os fios. Ainda assim, caminhei até o carro... que parecia ter sido coberto de piche e penas. Estava imundo por causa da lã de vidro utilizada aqui no isolamento térmico das casas. Isso me fez perceber que a coisa tinha sido mais séria do que eu imaginava, pois... para ter esse material ali, é que muitas casas foram destruídas. Olhei dentro do carro pela janela quebrada.... caos! Do lado do carro, um rato imenso, morto. Fiquei pensando como seria desagradável acabar por vir a encontrar um desses, ou um sariguê, morto, dentro do carro! Foi aí que vi algo na frente do carro: um poste de ferro, daqueles bonitinhos que têm um lampião em cima. Não tínhamos postes assim na vizinhança. Como foi parar ali?
De um lado do carro, reconheci o telhado do depósito da H.A.Edwards. Atrás, uma árvore, no outro lado, bloqueando completamente qualquer possibilidade de sairmos com o carro, outra árvore. Umas das que caiu em frente à nossa porta. E... postes e fios. Na mesma hora pensei que não seria seguro ou prudente sair ali naquele momento.  Resolvi então sair pela porta da frente. Nesse momento foi que me dei conta do estrago dentro de casa. A sala estava coberta de folhas e galhos de pinheiros. A porta... escancarada, e eu podia ver que os portais foram arrebentados, empurrados pra dentro. Pela porta aberta, eu via um amontoado de troncos de árvores.  O futon estava emborcado no meio da sala, e as janelas atrás dele arrebentadas. Entendi então que uma das árvores, ao cair, arrombou a porta, e após a janela ter seus vidros quebrados, o vento forte empurrou o futon, emborcando-o na sala. Fiquei impressionado com tamanha força. Eu só pensava em poder arrumar tudo antes de Teca chegar em encontrar aquele caos. Sabia que ela ficaria muito triste, e queria evitar esse sofrimento para ela. Levantei o futon, e coloquei-o em sua posição original. Estava imundo e molhado. As almofadas e a manta que o cobria[8] estavam lastimáveis. Comecei a sacudi-los, e reparei que estavam cobertos de vidro. Senti que muitos estilhaços entraram em minhas mãos... mas não estava nem ligando muito. Foi aí que me dei conta de que... não tinha jeito de arrumar nada. 
Pensei em sair para ver como estavam as coisas lá fora. Tinham muitos galhos, e pedaços de madeira bloqueando a porta. Comecei a abrir meu caminho quebrando galhos e arrancando pedaços de tábua que vinham de cima, chutando pedaços de madeira e detritos de meu caminho. Só depois percebi que essas tábuas eram da nossa pequena varanda, da porta de entrada. Tudo tinha sido arrancado e jogado ao chão, apesar de seus pilares de ferro.
Percebi também que tínhamos na verdade 3 árvores caídas em frente à nossa porta. Porém, a grande árvore que tínhamos bem em frente, tombou em cima do prédio, danificando seriamente o telhado do que seria a sala de estar de nossa vizinha Teresa. Achei que seria importante registrar os danos, e os momentos que estava vivendo. Peguei nossa câmara e comecei a tirar algumas fotos desde a nossa sala. Pouco a pouco consegui abrir caminho, e saí, andando com cuidado por cima dos troncos e galhos de árvore. Finalmente, cheguei à rua. Foi aí que a tal da sensação de estar em outra dimensão veio mais forte ainda. Eu olhei para a rua... e não reconheci! Tudo mudou! E... um silêncio como jamais ouvira antes. Aterrador! Foi aí que me dei  conta que... eu estava só! Por um tempo... eu fiquei lá,... só!
 Foi então que me veio o medo de ter sido o único sobrevivente. Isso me fez sentir medo pela primeira vez! Só pensei em voltar pra casa, juntar algumas coisas, e ir embora dali o mais rápido possível. Estava subindo nos troncos das árvores em minha frente, tentando alcançar a porta, quando ouvi uma porta se abrir, e vi Seyoung[9] sair, e correr em minha direção gritando:
-Tota! Vocês estão bem? Como está Teca?
Fui ao seu encontro, e avisei que eu estava bem, e que Teca estava melhor do que nós, pois estava a salvo em um abrigo. Percebi então que as pessoas começavam a sair de suas casas, e podia ouvir vozes agora. Fomos todos andando pelas ruas, e vendo se os outros estavam bem, e até ajudando à alguns a abrir caminho pra fora de suas casas, ou ajudando a tirá-los debaixo dos escombros. Ninguém ali foi ferido ou vitimado. Eu olhava ao redor, e via que a vizinhança simpática e agradável onde moramos por 5 anos não existia mais. Eu olhava para a porta de nosso apartamento, e via tudo destruído, árvores amontoadas em frente, outra árvore tombada em cima do telhado, seriamente danificado, as janelas quebradas, a varanda não existia mais, sentia um cheiro muito forte de madeira no ar, devido à imensa quantidade de árvores que foram quebradas... e eu me vi sozinho, em meio àquele caos. Finalmente me dei conta de que nada daquilo importava mais. O que era realmente importante era que todos ali estavam vivos e sãos. Não estava mais ligando para nossos pertences, nem para minhas flautas, tese, Universidade... Eu me senti muito leve, e talvez tenha me dado conta pela primeira vez em minha vida daquilo que realmente sou e do que realmente importa. A gente vem só para esse mundo, onde tudo é transitório e irreal. Tudo que é material é passageiro. Eu comecei a ver naquele momento as pessoas se falando e preocupadas umas com as outras. Todos nós conversávamos uns com os outros em meio àquele caos, e ficávamos felizes de ver que os outros estavam bem. Concluíamos que por tantos anos moramos tão perto uns dos outros, e praticamente nunca trocamos uma palavra entre nós. Foi necessária uma tragédia como essa para que as pessoas se vissem como pessoas, como iguais, como irmãos. Fiquei um tempo conversando com uma senhora negra, vestida como enfermeira. Ela me contava com lágrimas nos olhos do quanto que rezou e chamou “Jesus, Jesus, Jesus”. Eu olhei pra ela e disse:
-Engraçado.  A gente nunca se lembra dele normalmente. Nessas horas, a gente chama o nome Dele direitinho!
Ela começou a rir, e ficamos os dois assim, rindo por um tempo. As pessoas que passavam por nós olhavam achando que estávamos talvez histéricos. Não estávamos nem aí! Na verdade, estávamos felizes de estar vivos, e de ver tanta gente viva e bem ao nosso redor, em meio à uma destruição que ninguém ao menos poderia imaginar que alguém pudesse sobreviver.
 De repente, comecei a ouvir gritos e choro vindo da Rua 15. Encontrei-me com Ricard, um rapaz Turco que morava no prédio vizinho, atônito, sem saber o que fazer. Falei pra ele que eu tinha amigos na Rua 15, e queria ver como estavam as coisas lá pra eles. Ele perguntou se podia me acompanhar, e claro que eu disse sim. Percebi que ele estava muito assustado e sozinho. Achei que seria bom estarmos na companhia um do outro.
Quando chegamos à Rua 15, o que vimos foi aterrador. Simplesmente, não tinha nada em pé! Todos os postes no chão, quilômetros de fios espalhados. Olhamos pela rua 15 acima  e abaixo... só destruição. Do outro lado da rua, onde tinha uma lanchonete que gostávamos muito (Schlotzky’s), só restava um resquício de paredes, e um monte de tijolos. Aí, vimos uma garota chorando copiosamente, e um policial tentando acalmá-la. Foi quando percebemos que havia vítimas. Desencorajados de seguir pelos policiais, devido aos fios no chão, bem como pela possibilidade de outro tornado vir, retornamos para Cedar Crest[10]. Esse retorno foi ainda pior, pois pudemos ver os outros quarteirões. E eu percebi um grande prédio ao fundo que nunca tinha visto antes. Bem... depois percebi que ele sempre estivera lá.. as árvores de nosso bairro não nos deixava ver. Era o DCH Hospital. Mas, as ruas que achávamos tão bonitas, calmas e bucólicas, se tornaram em um cenário caótico, em um palco de destruição, onde não existia sequer uma lógica.
Comecei então a perceber que muitas árvores não foram derrubadas ou arrancadas pelas suas raízes. Elas foram literalmente quebradas ao meio de seus troncos. Fiquei chocado, imaginando a potência, a força dessa coisa, que quebra um tronco de árvore como se fosse um palito. Percebi também uma estrutura diferente daquele lado de lá. Era o tronco quebrado e uma árvore, mas com a raiz de outra árvore enfiada no meio de seu tronco. Ficou parecendo uma escultura moderna. Ainda assim, eu não estava pronto para conseguir ver algum tipo de beleza em um evento tão devastador. Só conseguia ficar atônito à tamanha força que conseguiu destruir tanto em tão pouco tempo.
Entrando em nossa rua, eu podia ver como os carros estavam destruídos. Alguns pareciam que tinham sido severamente metralhados! Eu pude ver milhares de pedrinhas pelos chãos, e compreendi que essas pedrinhas foi que atuaram como metralhadoras para os carros. Alguns tinham lascas de madeira enfiadas nos pneus e estofamento, como se fossem dardos ou flechas. Muitos galhos e lascas de madeira estavam fincados nas paredes das casas, ou na terra dos gramados como se tivéssemos recebido uma saraivada de flechas. Foi quando alguém falou alto na rua:
-Está vindo outro tornado! Todos voltem e se abriguem!
Corremos todos de volta à nossas casas, ou ao que sobrou delas. Entrei em meu “bunker”, que por sinal foi maravilhoso, e me tranquei lá. Desta vez liguei o lampião, e procurei acompanhar as notícias pelo rádio. Porém, tudo o que eles falavam no rádio era sobre a destruição já causada. Não nos era dada nenhuma informação sobre os próximos tornados, nem se eles realmente existiam. Desliguei o rádio, e saí de novo do meu abrigo. Do lado de fora o tempo estava estável, não parecia que viria tornado algum. Encontrei-me de novo com meus vizinhos, e resolvi que tinha de ir imediatamente encontrar-me com Teca. À essa altura ela já deveria saber que tínhamos sido atingidos, e ficaria doida com a falta de notícias minhas. Eu tinha de encontrar com ela o mais rápido possível, principalmente antes dela ver toda essa destruição. Comecei a descer a 4ª avenida, quando fui parado por um “Marine”, que me confirmou da existência de outro tornado no solo. Perguntei a ele sobre o tempo que tínhamos até que ele chegasse até nós, mas ele não soube me dar essa informação. A ordem que ele tinha era de avisar à todos para que se abrigassem. Perguntei se ele tinha aonde se abrigar, convidei para que viesse se abrigar em meu “bunker”. Ele agradeceu, mas declinou minha oferta. Mas uma vez, retornei para casa, e esperei. Enquanto esperava comecei a pensar que não podia simplesmente sair “na doida”. Pensei que se viesse outro tornado mesmo, o pouco que ainda restava de nosso apartamento e de nossa vizinhança seria completamente varrido. Pensei no que poderia e deveria salvar e levar comigo. Pensei em arrumar minha mochila com coisas importantes. Como estava usando meu estojo Weiseman, onde posso guardar todas minhas flautas, elas já estavam à salvo comigo. Depois de alguns minutos sem informação qualquer, sem que o rádio divulgasse alguma notícia concreta sobre a probabilidade de sermos atingidos por outro tornado, resolvi sair mais uma vez.
Lá fora, todos se encontravam tão confusos e desinformados quanto eu. Alguns podiam conectar-se com outras pessoas através de seus celulares uma vez que suas operadoras ainda funcionavam. Mas as informações eram todas imprecisas. Resolvi que tinha de sair logo dali e, principalmente, encontrar-me com Teca. Eu sabia que ela deveria estar aflita, e precisava dizer à ela que eu estava bem. Conversei com Ricard que eu não ficaria ali, precisava avisar à Teca que eu estava bem, e que na Escola de Música eu estaria mais seguro. Ele perguntou se podia ir comigo, e é claro que concordei. Disse que ia pegar alguns itens e botar na mochila, e que iria tão logo pegasse tudo. Entrei em casa, peguei algumas roupas para ela e para mim, peguei nossos passaportes, 3 lanternas, e algumas ferramentas. Lembrei de levar meu “netbook”, pois poderia tentar conexão na Escola de Música, e avisar à todos que estávamos bem. Eu também ainda pensava em acabar de escrever minha dissertação. Mas, era quase uma alucinação pensar em algo assim. Mais tarde eu viria me dar conta de que seria impossível continuar com qualquer coisa dessa pelas próximas 2 semanas. Saí, encontrei-me com Ricard, e nos pusemos a caminhar. Antes de virarmos a esquina de nossa rua, vi Teca entrando em nossa rua. Ela estava muito séria, e andava sem parar, com o olhar fixo em nossa casa. Ela estava tão concentrada que nem me viu na rua. Precisei gritar seu nome para que ela prestasse a atenção em mim. Quando me viu, ela abriu no choro, e me abraçou.
Indo para um abrigo
Ficamos assim, abraçados por um tempo, ela chorava muito. Outros amigos chegaram perto de nós, e falaram com ela, procuraram consolá-la também. Eu entendi o que ela deveria estar sentindo. O tempo todo eu estava com isso na cabeça. Eu pensava como eu me sentiria se soubesse que ela estava em meu lugar, e eu estivesse à salvo em um abrigo. Por isso eu queria tanto sair logo de lá. Infelizmente, com tantos avisos falsos de tornado, isso me atrasou uma hora de tomar o meu caminho. Foi o tempo para que ela viesse ao meu encontro.
Depois que se ela acalmou, eu expliquei pra ela toda a situação do apartamento, e de como me protegi. Falei que já tinha pegado algumas roupas para ela, e que seria melhor que fôssemos embora dali. Disse que se ela quisesse pegar alguma coisa específica, que fosse em casa buscar. Ela entrou em casa, e pegou mais alguns documentos, pasta e escova-de-dentes, e mais outras coisas que ela poderia precisar. Assim que ela saiu, nos despedimos de nossos vizinhos dizendo que iríamos nos abrigar na Escola de Música, e partimos. No meio do caminho fomos interpelados por um “Marine” que nos avisou da possibilidade de outro tornado. Avisamos à ele que não tínhamos condição de ficar ali apenas esperando, e que estávamos indo para um abrigo. Perguntamos quanto tempo tínhamos até o próximo tornado, e ele respondeu que ainda tínhamos uma janela de meia-hora. Era tempo mais que suficiente. Tomamos nosso rumo, tentando encontrar brechas em meio ao caos por onde passar. As ruas que conhecíamos já não existiam mais. Eram apenas amontoados de árvores, postes, fios, e carros virados e destruídos. Tínhamos de passar por baixo de troncos, pular fios, até pisar em para-choques de carros para poder seguir caminho. Era muita destruição! Tentávamos caminhar rápido com medo de sermos apanhados por outro tornado no caminho, mas era difícil. Finalmente chegamos à avenida principal, que nos levava rumo aos trilhos de trem. A mesma desolação. De lá, víamos o outro lado do bairro, que fora muitíssimo mais destruído. De lá, podíamos ver quilômetros adiante. Não existia mais nada para bloquear nossa visão. Tudo foi varrido.
Andávamos muito rápido, quando encontramos com um dos “roomates” de Ricard, que vinha de bicicleta. Quando soube que íamos para um abrigo, pois o apartamento tinha sido destruído, fez a volta, e veio conosco. Conversando, descobrimos que ele conhecia Aída[11]. Como ela morava em uma transversal da Rua 15, pedimos à ela que ligasse para ela, para sabermos como estava. Ela respondeu que estava bem, pois se abrigara nos porões da Escola de Música. Depois de falar com ela, rumamos direto para a escola. No caminho, ainda encontramos com o outro “roomate” dos Turcos. Ele juntou-se à nós, e fomos para a Escola.
No abrigo
À caminho da Escola de Música o vento já se tornava mais forte de novo. Víamos um tráfego muito grande de carros, e ouvíamos muitas sirenes de carros de polícia e de bombeiros. Víamos o céu escurecer de novo, e apertamos o passo. Foi chegarmos na escola, começou a chover de novo. Fui direto para o estúdio[12] da minha professora, e botei nossas coisas lá. Depois disso, fomos checar com o resto das pessoas que estavam lá. A maioria passou o pior lá mesmo. Porém, muita gente ia chegando na escola carregando sacolas de pertences, comida, e até animais de estimação. Eram muitos que chegavam lá para se abrigar. Aos poucos íamos sabendo dos dramas de cada um. Um casal perdeu a casa. Eles moravam em Alberta City[13], que foi completamente varrida pelo tornado. A esposa do casal estava em casa. Ela escapou por milagre, pois a casa saiu voando... e ela ficou com os animais de estimação. O procedimento padrão seria para que ela se abrigasse dentro da banheira. Sem saber por que, ela simplesmente foi para o corredor da casa.[14] Bem, a casa toda voou, e a banheira foi levada junto. Ela ficou no chão... não se sabe porque! O que soubemos mais tarde foi que “Alberta City is no more!”
Depois de vivermos o que vivemos, virmos o que vimos, e de ouvirmos os relatos que ouvimos, nós concluímos que não existem regras quando se fala em tornados. O melhor, em nosso caso, é irmos para o porão da Escola de Música, seja a que horas for!
Estar na Escola nos dava uma sensação de segurança muito grande. É um prédio muito sólido, com paredes externas de tijolos de concreto, muito grossas. O porão é todo de concreto, e o prédio foi construído com o propósito de resistir aos tornados. Além disso, estar em companhia dos nossos colegas foi muito bom. Mesmo quando outra tempestade muito forte se abateu sobre nós, sendo emitido mais uma vez um “tornado warning”, com sirenes soando e tudo. Todos nos dirigimos ao porão, de onde nem ouvir a tempestade ouvíamos. Volta e meia alguém subia para ver se a tempestade já tinha se dissipado. Encontramos com Aída lá, porém ela estava muito ansiosa. Ficava o tempo todo querendo sair de lá, sendo que estávamos no lugar mais seguro possível. Finalmente, após uma segunda tempestade, o tempo melhorou muito, o “tornado warning” foi suspenso, e saímos. A idéia era procurar por algum lugar que tivesse energia elétrica para carregar nossos celulares e avisar à alguns amigos e parentes que estávamos bem. Sabíamos que todos deveriam já saber do ocorrido aqui. Apesar de não ter passado pelo que passamos, Aída estava visivelmente muitíssimo mais nervosa do que nós deveríamos estar. Eu tive que acabar dirigindo seu carro em busca de um lugar com energia elétrica. Tive de dirigir muitos quilômetros até achar um supermercado com tomadas do lado externo. Carregamos os celulares, e avisamos à alguns amigos daqui dos EUA, bem como minha professora, que já estava aflita, pois quando nos despedimos ela sabia que eu ia para casa. Foi um alívio para ela, para Barbara, e outros amigos quando souberam que estávamos bem. Por sorte, perto de lá tinha um restaurante (Taco Casa) ainda aberto. Eu estava faminto, desde que não tinha almoçado ainda com a história de escrever meu documento... e da passagem do tornado. Comemos algo lá, que me pareceu a coisa mais deliciosa do mundo. Agradeci muitíssimo ao gerente do estabelecimento, pois eles já deveriam ter fechado as portas há 1 hora e meia. Porém, ele achou que seria bom para a comunidade se esperasse um pouco mais. Já eram 11 e meia da noite, e de fato, foi a hora que todos conseguimos sair para buscar algo.
Depois disso, nós só queríamos mesmo ir para a Escola e dormir aonde fosse. Porém, Aída estava numa ansiedade tamanha, que nos fez ficar rodando pela cidade num trânsito caótico em busca de um lugar decente para dormir. Finalmente, conseguimos convencê-la a ir dormir na casa de um amigo, e que nos largasse na Escola. Ainda assim, ela ofereceu para que ficássemos com ela em sua casa, uma vez que, praticamente, não foi danificada. Não teríamos acesso à ela nessa noite, mas poderíamos ficar lá nos outros dias.
Uma vez na Escola, nos arrumamos no chão do estúdio de flauta, para dormir. Antes porém, fui fazer uma ronda na Escola.[15] Foi muito legal ver outros colegas nossos juntos, jogando cartas, conversando, e até tocando. Uns faziam companhia aos outros, e procuravam manter o astral alto. Isso me fez ficar muito feliz por fazer parte dessa comunidade que é a Escola de Música. Voltei para o estúdio de flauta, depois de escovar os dentes, deitei no chão usando meu estojo de flautas como travesseiro, e finalmente dormi um dos melhores sonos que poderia ter tido.
“The day after”
Acordamos cedo no dia seguinte, com o nascer do sol de um dia lindo, porém a temperatura tinha descido bastante. Geralmente é o que acontece depois de uma tempestade dessas. As massas de ar opostas se chocam e se equilibram, e os dias seguintes se tornam muito mais frescos. Levantamos, e poucos de nossos colegas já se encontravam despertos. Pensamos em sair para buscar por um lugar aonde pudéssemos tomar um café-da-manhã. Foi quando Erica Basett[16] chegou. O apartamento dela não sofreu nada com o tornado, e ela pode tomar banho, trocar de roupa... mas chegou pensando em sairmos para comprar café-da-manhã para todos. E, foi o que fizemos. Como ela estava com carro, fomos com ela à um supermercado e compramos algumas coisas. Como fui o gerente do prédio, tinha as chaves das salas, e pude pegar uma mesa grande para armarmos um “bufett” onde todos pudessem servir-se tão logo acordassem.  Enquanto comíamos, o Diretor da Escola chegou, e nos deu a notícia de que o Reitor da Universidade tinha dado o semestre como suspenso, e encorajado os estudantes à retornarem para as casas de suas famílias o mais cedo possível.
Tão logo comemos, nos arrumamos para voltarmos ao nosso apartamento e vermos como as coisas tinham ficado depois de tanta tempestade. Caminhando pela rua, era triste ver a evolução da destruição à medida que chegávamos perto de nossa vizinhança. Deu para que eu tivesse uma idéia do “calvário” vivido por Teca ao percorrer todo esse caminho sozinha, sem saber sequer se ia me encontrar vivo ou morto. Chegando perto dos trilhos de trem que ficam anteriores à entrada de nosso bairro, tinha uma barreira policial. Eles não estavam deixando que ninguém entrasse no bairro. Muita confusão estava se formando, pois algumas pessoas tinham familiares que foram vitimados na vizinhança, e não podiam entrar para ajudar. Mantivemos nossa calma, e conversamos com uma policial, que nos atendeu muito gentilmente, ainda que não tenha nos franqueado a entrada. Com lágrimas nos olhos, ela nos falou que barrou inclusive uma grande amiga dela que morava ali. Existia ainda riscos de curto-circuito por conta dos fios pelas ruas, e havia vazamento de gás. Só poderíamos entrar lá umas 3 horas depois. Sem ter o que fazer, voltamos para a escola e... fomos estudar! Estudei flauta por 2 horas no mínimo, e foi muito bom. Quando saí para ir ao banheiro, vi que muitos dos nossos colegas faziam o mesmo.
Finalmente, mais tarde, pudemos ir e entrar em nossa rua. A rua de acesso já tinha sido bem limpa, e podíamos andar sem pular postes ou árvores. Ainda assim, tinham muitos fios espalhados pelo chão.
Quando chegamos em nossa rua, o cenário ainda era desolador. Vímos muitos de nossos vizinhos já carregando seus pertences para fora de suas casas, outros cobrindo seus carros seriamente danificados com plásticos, outros tirando os galhos de árvores, e coisas quebradas de dentro de suas casas. A rua estava desfigurada. No caminho em direção ao nosso apartamento Teca não pode mais conter o choro. Realmente, era muito triste ver um lugar que era tão lindo, e onde fomos tão felizes ser reduzido à um amontoado de lixo.
Entramos em nosso apartamento, e para minha surpresa, estava do mesmo jeito que deixamos. Sinceramente, eu imaginava que seríamos saqueados.[17] Eu me lembro na noite anterior, enquanto dirigia buscando um lugar com luz elétrica, que ouvíamos o rádio onde era noticiado que a polícia prendeu muitos suspeitos de saques andando pelas ruas após o tornado. O policiamento nas ruas durante à noite foi ostensivo e inclemente.
Já eram quase 5 da tarde, e pouco íamos poder fazer lá até que escurecesse. Estava tudo muito sujo, danificado, e... tudo estava úmido e coberto de estilhaços de vidro. Soubemos que a polícia tinha estipulado um toque de recolher às 8 horas da noite nas regiões afetadas por medida de segurança. Em 3 horas, pensamos que deveríamos juntar algumas roupas, sapatos, os nossos pertences mais valiosos, e rumarmos para a casa de Aída, que era bem próxima da nossa. Graças à Deus nossas roupas e sapatos estavam guardadas em gavetas e armários, e ficaram intactas.  Fizemos 2 malas, com essas coisas, construí uma barricada com os móveis na frente da porta que foi arrombada, e rumamos para a casa de Aída onde passamos a noite.
A vizinhança dela também foi seriamente afetada, porém a rua dela ainda tinha muitas casas inteiras, e muita gente estava ainda morando lá. Apesar da falta de luz, que contornamos usando velas e lanternas, ainda tínhamos água e um teto sobre nossas cabeças. Dormimos no futon que ela tinha em sua sala. Dormimos bem pela primeira vez desde que tudo aconteceu.
Trabalho duro
No dia seguinte acordamos cedo. Era nossa intenção ganharmos o maior tempo possível para resolver o máximo que pudéssemos. E ainda tínhamos que fazer um inventário do que podíamos ainda aproveitar dos nossos pertences, reunir tudo e transferi-los para um novo lugar. Aída se dispôs a nos levar aonde a gente quisesse ir, e achei que era importante que fôssemos à empresa onde alugamos o apartamento ver o que poderia ser feito. Eles foram mais que 100% conosco, e saímos de lá já com as chaves de um novo apartamento em nossas mãos. Dava um alívio saber que já tínhamos aonde botar nossas coisas. Depois disso, tínhamos de empacotar nossas coisas, e mudar o mais rápido possível.
Aída nos deixou em sua casa, e tivemos de andar até a nossa. Era impossível dirigir pela Rua 15. Fomos caminhando, e vendo à luz do dia outro cenário da destruição. Nesse lado a coisa foi muito pior que em nossa vizinhança. Era difícil de acreditar que alguém tivesse sobrevivido. Porém, nos dava muita alegria passar pelos escombros que um dia foram casas, e ver escrito que não houve vítimas. Todos trabalhavam muito abrindo as ruas, limpando os terrenos, consertando telhados, desobstruindo as entradas das casas. Infelizmente, pudemos testemunhar algo que nos deixou muito tristes e revoltados: muitas pessoas andando na rua apenas para fazer fotos e ver a destruição. Achei aquilo de uma insensibilidade e morbidez inimaginável! Eu fiz muitas fotos de nossa vizinhança, e publiquei em meu facebook. Porém, isso foi um capítulo muito importante em minha vida. Ter vivido isso fez uma diferença muito grande no que sou hoje, e naquilo que valorizo. Mais tarde gostaria de fazer fotos em Alberta também, para ter um registro desse momento que foi muito importante em nossas vidas. Porém, nesse estágio onde temos que trabalhar para tornar a cidade viável, ver as pessoas andando na rua, e posando em frente à destruição como turistas em frente à Torre de Pisa, me deu muita raiva. Nos dias que se seguiram a polícia e a Guarda Nacional foram rigorosos em bloquear o acesso de curiosos à região. Para entrarmos tínhamos de estar de posse de documentação que provasse nossa residência no local.Desse dia em diante nossas vidas se resumiram à limpar, encaixotas, consertar, quebrar, e defenestrar aquilo que não mais nos servia. Eu usava minha lanterna de cabeça e minhas luvas 100% do tempo. Ainda assim, até hoje tenho pedaços de vidro enterrados nelas. A poeira que tinha no apartamento nos fez desenvolver uma tosse nada agradável. Porém, não tive um sintoma de gripe sequer, e me senti muito forte e saudável. Isso era imperativo para conseguirmos dar conta de tudo que tínhamos de fazer, e ainda ajudar aos outros quando nos solicitavam ajuda. Eunice e Seyoung estavam em uma situação bem pior que nós. Eunice dera a luz 2 semanas antes, o filhinho tivera muitas complicações pós-parto, e eles ainda tinham a mãe dela como hóspede. Ajudamos à eles no que pudemos. Procuramos manter um bom astral, e era sempre uma alegria constatar que nossos pertences estavam intactos, ainda que sujos e com pequenas “cicatrizes”.
Nesse mesmo dia começamos a transferir algumas caixas com nossos pertences para o novo apartamento. Contamos com a ajuda de muita gente, em especial a professora de oboé, Shelley Meggison, que foi incansável. Teca agendou a mudança dos móveis para a terça-feira pela manhã, que foi quando imaginamos mudar definitivamente. Apesar da quantidade de coisas que acumulamos em 5 anos, em 4 dias conseguimos encaixotar e transportar tudo. Ao fim do inventário, não perdemos nada. E até um saco de lixo foi trazido na mudança para o novo apartamento!
Não nos sentimos vítimas por momento algum. Muito pelo contrário, nos sentimos pessoas afortunadas por estarmos saudáveis, termos força suficiente para trabalhar pesado incessantemente por tantos dias, apesar do ambiente insalubre. Graças à Deus, Teca e eu somos os virtuoses da improvisação, muitas vezes até inventando ferramentas para resolver problemas. Além disso, foi maravilhoso ver como as pessoas eram gratuitamente solidárias. Várias vezes éramos interpelados por pessoas se oferecendo para ajudar de alguma forma. Fosse oferecendo água ou comida, oferecendo força de trabalho para ajudar a carregar algo, ou apenas uma palavra de solidariedade. Carros da Cruz Vermelha passavam à todo instante oferecendo comida (muito boa por sinal) e água. Outros carros de voluntários também ofereciam comida. Acho até que ganhei peso!kkkk.... Víamos grupos de rapazes andando pelas ruas com ferramentas pesadas e moto-serras. Precisamos tirar os troncos de árvores da frente de nosso apartamento para fazer a mudança, e um grupo desses fez o serviço em menos de 15 minutos. E do jeito que vieram,...  foram. Ao agradecermos, disseram que faziam a obrigação deles.
Também procuramos fazer nossa parte dentro desse cenário. No domingo, apesar de estarmos abrigados na casa de Aída, e ainda termos o que fazer, fomos à St. Francis, e tocamos em 2 serviços. Foi muito bom poder ver que as pessoas da comunidade se encontravam bem, ainda que algumas tenham perdido suas casa, e até seus negócios. Padre Holloway soube de nosso perda, e nos ofereceu um dos apartamentos junto da igreja para ficarmos. Agradecemos, mas já tínhamos onde ficar. Recebemos muitas ofertas de moradia, roupas, móveis... mas realmente não precisávamos. O mais tocante para mim, foi um amigo que conheci há 2 anos atrás no Festival de Flautas da Mid-South Association – David Etiénne. Ele é professor de flauta aposentado, e um fanático pelo instrumento, à ponto de colecioná-los também. Quando soube que fomos atingidos, nos ligou na segunda-feira para me dizer que já tinha separado uma flauta, um Piccolo e uma flauta em sol para me oferecer. Ele imaginava que eu tinha perdido todos meus instrumentos. Ficou muito feliz quando soube que minhas flautas estavam a salvo. Mas, fiquei muito tocado com sua generosidade e desprendimento. Uma oferta dessas significa dar um presente de, no mínimo, US$ 15.000,00.
Em uma das nossas últimas idas ao nosso apartamento destruído, eu estava do lado de fora conversando com um vizinho, que eu vi pela janela quando ele chegou em casa, talvez 20 segundos antes que o tornado tenha nos atingido. Chegou um grupo de rapazes oferecendo qualquer tipo de ajuda, água, comida, mãos extra para trabalhar... Como já estávamos de saída, declinei da oferta. Ainda assim eles insitiram, e eu aceitei que me dessem duas garrafa de água.[18] Nosso amigo também pediu uma lona para cobrir o seu carro que foi bem avariado. Eu imaginava que eles eram de alguma igreja, até pela maneira como estavam vestidos, e pelos cortes de cabelo. Eles voltaram com a lona e... 9 garrafas de água! Agradeci muitíssimo. Foi aí que Teca apareceu, e botou os coitados para trabalhar duro carregando o resto das coisas que ainda tínhamos de botar no carro. Dava para ver que eles já estavam de banho tomado, e Teca botou os coitados pra suar![19] Entrando e saindo de casa, eles reparavam na destruição dentro do apartamento, e no estado do carro, que não estava dos piores! Durante esse processo eles se apresentaram como fuzileiros navais (marines) que depois de cumprirem com suas obrigações ligadas à corporação, acharam por bem sair de novo às ruas como amigos, continuando a ajudar às vítimas do tornado[20]. Foi quando um deles me perguntou?
-Você estava em casa quando isso aconteceu?
Eu respondi que sim, e ele continuou:
-Sou “marine”, já fui para o Iraque, Afeganistão, Paquistão... e nunca vi tanta destruição em uma guerra como vi aqui! Como foi estar no meio disso?
Comecei a contar à eles tudo o que descrevi na segunda parte desse relato. E eu reparava que eles estavam sensivelmente chocados e tocados pelo que eu contava. Ficaram horrorizados quando eu contei que a passagem do tornado durou uns 10 segundos. Todos comentaram que nem uma bomba faz tanta destruição em tão poço tempo.[21] Me impressionou ver rapazes jovens, que apesar de já terem vivido os horrores de guerras, estavam sensivelmente tocados pelo sofrimento das pessoas, e com suas ações mostravam ser boas pessoas.
Sinceramente, hoje eu me sinto afortunado por ter vivido esse tornado. Ser testemunha de tanta solidariedade e desprendimento por parte desse povo, seja de que raça, religião, ideologia ou grupo político, foi das melhores lições que podia ter aprendido. Nem todos os anos na UFBA ou na UA me ensinaram tanto. De que adianta ser mestre e doutor sem “ver” as pessoas ao seu redor, e não se sensibilizar e solidarizar com elas? Hoje, já quase um mês após vivermos esse tornado, já temos notícia do tornado de Joplin, que foi muitíssimo mais mortal do que o que passou aqui. Ver o sofrimento deles faz sangrar e doer outra vez as nossas cicatrizes. E isso é apenas o início dessa temporada de tornados, que promete ser arrasadora, segundo os cientistas. Será que isso acontece por Karma? Nossa amiga Aida praticamente fugiu daqui[22], com medo de previsões que ouviu na Romênia de que os EUA seriam varridos do mapa até 2012. Que isso era apenas o início do fim. Eu acredito que algo será mudado nesse país, e que talvez seja o fim de algo. Porém, vendo todo o movimento das pessoas em prol da vida, tanta solidariedade vindo de onde nem esperamos, eu acredito que seja o fim de uma sociedade individualista, egoísta e consumista, para a construção de uma nova ordem onde exista fraternidade, respeito à vida, e compartilhamento.



[1] Uma delas eu já botei na cabeça e a mantive aí o tempo todo.
[2] Em caso de perda de energia, eu ainda poderia acompanhar as notícias.
[3] Nosso prédio foi construído na década de 50.
[4] O choque entre massas de ar polares (frias e secas), com massas de ar tropicais (quentes e úmidas) é o que causa essa instabilidade. O tornado é a tentativa da natureza de se equilibrar.
[5] Traduzindo literalmente, “bola de detritos”. É a massa de detritos que é arrastada pelo trubilhão, e fica rodando no ar, aumentando como uma bola de neve à medida que o tornado vai “sugando” mais e mais. Esses detritos podem ser areia, pequenas pedras, chaves, fios, galhos de árvores, chaves, papel, bem como pedras grandes, postes, árvores inteiras, carros, caminhões e casas.
[6] 321.86 Km/h
[7] Mais tarde eu pude achar pedaços de vidro enterrados no teto e paredes, assim com em lombadas de livros, e no sofá.
[8] Foi um presente que Barbara nos deu quando fomos à West Virginia no ano novo de 2008, que também era seu aniversário.
[9] Coreano, marido de Eunice, minha colega de flauta que morava defronte à nós.
[10] Nossa vizinhança.
[11] Romena, amiga nossa, colega de piano de Teca.
[12] Como sou seu monitor, e tenho alguns alunos sob minha tutela, tenho a chave da sala. Ela me deixa também usar o estúdio para meus ensaios, ou para estudar nos horários em que ela não está usando.
[13][13] Alberta City seria uma cidade próxima, porém se tornou como um subúrbio de Tuscaloosa, assim como Lauro de Freitas para Salvador.
[14] Mais tarde, soubemos que a banheira foi encontrada à mais de 200m adiante, em cima do telhado de outra casa.
[15] Como fui gerente do prédio, fui checar para ver se estava tudo em ordem. Não tinha mais essa obrigação, mas eu conheço o prédio como poucos aqui. Preferi checar para ficar certo de que todos teríamos uma noite sem percalços.
[16] Uma colega nossa, um amor de menina, saxofonista.
[17][17] É muito comum de acontecer isso após tragédias assim. Muitas gangs saem pelas ruas coletando tudo que podem. É desumano, mas ninguém disse que esse país aqui não o é!
[18][18] Com a passage do tornado, o fornecimento de água da cidade ficou comprometido, uma vez que a bomba responsável pela distribuição de água teve a sua unidade de fornecimento de energia seriamente danificada. A qualidade da água nos canos também deixou de ser confiável, e foi constatada contaminação por coliformes fecais. A distribuição de água potável na cidade se tornou crucial. Existem existem pilhas de garrafas pet de água potável em frente à supermercados e locais públicos. Até hoje estamos fervendo a água antes de filtrar.
[19] He,he,he,he,he,….
[20] O mais velho deles deveria ter uns 30 anos.
[21] É claro que não estavam falando de uma bomba nuclear, mas sim de bombas convencionais.
[22]Mudou-se para a Alemanha há 2 semanas. Claro que não apenas por essa razão, mas a passagem do tornado acelerou a sua partida.

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