segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

DISCO OCUPADO

RUY CASTRO

RIO DE JANEIRO - Na próxima vez que você esquecer o nome do seu neto, não tiver certeza se já tomou banho ou não se lembrar por que saiu de casa com um envelope endereçado e fechado contendo uma carta, não se desespere. Pode não ser --ainda-- a chegada do velho Al (Al Zheimer, conhece?) ou de alguma outra forma de demência senil. Estudos recentes de cientistas alemães indicam o contrário: quem mais esquece é o homem que sabe demais.
Segundo eles, o cérebro do idoso, se não reage de pronto a certas solicitações, não é porque esteja com as porcas e arruelas enferrujadas ou sendo apagado aos poucos como um quadro-negro. É porque levou décadas armazenando informações. E, por ele conter gigantescos blocos de informações, mais complexa e lenta será a busca entre elas de informações novas. É como o disco rígido do computador que, por estar "cheio", demora mais para processar os dados.
Essa não é uma imagem, mas um diagnóstico. Os alemães simularam em computador o desempenho de bancos de dados maiores e menores --esses últimos, equivalentes ao cérebro de um jovem adulto-- e constataram que a diferença não estava no desgaste do material, aliás inexistente, e sim na carga de dados.
Gostei dessa descoberta, mas eu próprio já havia chegado a ela sem precisar de simulações. Há tempos venho percebendo que minha lentidão para gravar certas informações se dá porque o espaço na cabeça está ocupado com detalhes da trama de romances como "Scaramouche", "O Pimpinela Escarlate" e "Elzira, a Morta-Virgem", gibis de Mandrake, Dick Tracy e Brucutu, cenas de beijo de filmes de Marisa Allasio, frases do Millôr, tratados de fenomenologia de Husserl e letras de marchinhas de Carnaval como "Aurora", "Saçaricando" e "Tem Nego Bebo Aí".
Não que as ditas informações novas merecessem ocupar o lugar dessas maravilhas.

Ruy Castro (Caratinga27 de fevereiro de 1948) é um jornalista e escritor brasileiro.
Com passagem por importantes veículos da imprensa do Rio e de São Paulo a partir de 1967, e escritor, a partir de 1988. É reconhecido pela produção de biografias como "O Anjo Pornográfico" (a vida de Nelson Rodrigues), "Estrela Solitária" (sobreGarrincha) e "Carmen" (sobre Carmen Miranda), e de livros de reconstituição histórica, como "Chega de Saudade" (sobre a Bossa nova) e "Ela é Carioca" (sobre o bairro de Ipanema, no Rio).
Parte de sua produção jornalística foi reunida em livros como "Um Filme é para Sempre" (sobre cinema), "Tempestade de Ritmos" (sobre música popular) e "O Leitor Apaixonado" (sobre literatura). Escreveu também um ensaio sobre o Rio, "Carnaval no Fogo -- Crônica de uma Cidade Excitante Demais". Seus livros têm edições nos Estados Unidos, Japão, Inglaterra, Alemanha, Portugal, Espanha, Itália, Polônia, Rússia e Turquia. Em ficção, é autor do romance "Era no Tempo do Rei", das novelas "Bilac Vê Estrelas" e "O Pai Que Era Mãe", e de condensações de clássicos como "Frankenstein", de Mary Shelley, e "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carroll.

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