sexta-feira, 20 de junho de 2014

O CAIS JOSÉ ESTELITA DE PARIS

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Bercy é um bairro de Paris que tem muitas semelhanças com o Cais José Estelita, mas seu projeto de urbanização e integração com a cidade foi muito diferente do que propõe o consórcio Novo Recife. 

"O novo bairro de Bercy"

Por Stephane Kirkland, arquiteto urbanista e historiador, autor do livro Paris Reborn:Napoléon III, Baron Haussmann, and the Quest to Build a Modern City.


O bairro de Bercy é freqüentemente usado como exemplo bem sucedido de planejamento urbano contemporâneo. Um de seus sucessos é ter criado um bairro real do nada em uma área inicialmente pouco promissora. Mas a característica talvez mais marcante desta operação é ter criado uma forma urbana que é bastante ordenada porém diversa, moderna, e ainda assim reconhecível dentro da tradição do desenho urbano parisiense. Vale a pena contar a história deste projeto urbano exemplar.


A área é uma longa faixa de terreno no leste de Paris, cercada no sudoeste pelo rio Sena e pela estrada que o acompanha, e no noroeste pela estrada de ferro que leva à Estação de Lyon. Tem cerca de 800 metros de comprimento e atinge, em sua borda sudeste, a avenida Poniatowski, um segmento das avenidas que contornam a região metropolitana de Paris.
http://stephanekirkland.com/wp-content/uploads/2011/11/102-141.jpgHistoricamente, o local serviu como área de armazenamento, principalmente para o vinho. Havia boas razões pelas quais sua localização era perfeita para este fim. Situa-se ao longo do Sena, o que permitiu o fácil descarregamento do que vinha de rio acima, inclusive de Borgonha, uma importante região produtora de vinho. Desde a década de 1780, quando o muro dos Fermiers Généraux foi construído, o local tinha a vantagem adicional de ser localizado fora dos limites da cidade e, portanto, não estar sujeito ao imposto "octroi". O uso do local para armazenagem aumentou, transformando a área no principal centro de atacado e logística de vinho em Paris. Em 1877, a cidade de Paris comprou o terreno e coordenou os armazéns, locando os edifícios para operadores.

Em 1982, a cidade lançou um vasto programa de revitalização do leste de Paris. A zona de Bercy foi parte das áreas em análise, com a vantagem óbvia de que a terra já pertencia ao município. Decidiu-se colocar um fim ao papel de armazenagem do local, que já estava em declínio avançado. Não era evidente, contudo, que seria possível transformar a área em um bairro urbano multi-uso. O local era segreado da cidade, fora do centro, fisicamente marcado por seu passado de armazenagem, e inacessível por transporte público.

A cidade decidiu usar o mecanismo da Zone d'Aménagement Concertée (ZAC). O ZAC é um procedimento planejamento urbano criado no direito urbanístico francês em 1967 para permitir o desenvolvimento de zonas pelo governo a partir de um plano urbano específico e diretrizes de desenvolvimento estabelecidas num plano detalhado, conhecido como Plan d'Aménagement de Zona (PAZ). A cidade, portanto, pediu ao escritório de planejamento urbano público filiado ao Município para desenvolver a PAZ. O ZAC foi oficialmente criado e a PAZ foi aprovado pelo Conselho da Cidade de Paris em 29 de fevereiro de 1988.



O princípio para o novo bairro de Bercy estava alinhado com o plano geral para o leste de Paris: construção de habitação, tanto para habitação subsidiada quanto para as classes médias, desenvolvimento de espaços para fins comerciais e alguns usos industriais, e melhoria global da infra-estrutura da cidade e requalificação de áreas degradadas. Especificamente para Bercy, o programa inclui:

- Um parque de 12,5 hectares;
- 1.500 unidades de habitação, misturando unidades subsidiadas e para o mercado;
- 113 mil metros quadrados de escritórios;
- 40.000 metros quadrados para comércio.

O parque seria construído em uma faixa ao longo do Sena, permitindo a preservação de uma série de impressionantes árvores antigas localizadas ali e a incorporação dos edifícios dos antigos armazéns. Um novo bairro seria construído ao longo da fronteiranordeste da área e em um bolsão ao leste.

O concurso para o projeto do parque foi ganho por Marylène Ferrand, Jean-Pierre Feugas, Leroy Bernard e Bernard Huet. O plano deles era enfaticamente não fazer o que muitas vezes é feito em tais circunstâncias, que é fazer terraplenagem e começar do zero.



Em vez disso, eles cuidadosamente incorporaram elementos das instalações industriais existentes no novo parque. Eles restauraram edifícios antigos, mantiveram algumas paredes e aspectos da topografia, e, em especial, protegeram uma série de gloriosas árvores antigas. Isso não apenas permitiu que o parque continuasse como uma memória viva do antigo uso daquela área, mas deu-lhe uma sensação de ser habitada desde o dia de sua abertura. Este parque nunca teve o equivalente para os parques do "cheiro de carro novo". É hoje um parque muito popular, muito usado, composto de muitos espaços diferentes e combinando diferentes formas de uso.

A empresa construtora do bairro de Bercy foi a SEMAEST, uma empresa de direito privado cujo acionista majoritário (58,2%) é a cidade de Paris e que foi criada para gerir uma série de projetos de desenvolvimento urbano no leste da cidade. O papel de SEMAEST na operação de Bercy era adquirir o terreno (tudo feito amigavelmente), preparar o local e implementar a infra-estrutura exigida pelo PAZ, vender os lotes individuais para promotores imobiliários e assegurar o bom desenrolar geral dos eventos na construção do bairro. Esta estrutura é muito típica de projetos urbanos franceses. As despesas da SEMAEST com este projeto foram de € 173 milhões e suas receitas foram de € 393 milhões. Em outras palavras, ela teve um lucro de € 120 milhões (sic) [o autor parece ter calculado errado, pois, com esses números, o lucro seria de € 220 milhões].

O aspecto mais marcante desta operação foi a decisão de nomear um arquiteto responsável por coordenar a definição das especificações a que todos os construtores teriam que se conformar. O arquiteto escolhido foi Jean-Pierre Buffi, um conhecido arquiteto de origem italiana que atua em Paris desde os anos 1960, quando ele veio trabalhar para Jean Prouvé. O papel de Buffi era definir a forma urbana, estabelecer as especificações arquiteturais para os edifícios, assistir a cidade de Paris na seleção dos arquitetos, e monitorar a conformidade das empreiteiras com suas especificações. Em outras palavras, ele foi o responsável pelo desenho urbano em um nível de granularidade muito mais refinado do que é muitas vezes praticado.

Buffi começou por estudar o que ele considera serem as duas mais bem sucedidas fachadas voltadas para parques em Paris: os edifícios de frente para o Jardim das Tulherias na Rue de Rivoli e os edifícios de frente para o Champ de Mars (o parque onde fica a Torre Eiffel). Isso o ajudou a compreender que a fachada no parque de Bercy fosse de um tamanho e escala que a colocasse firmemente em uma tradição parisiense.


Por um lado, Buffi se manteve dentro da tradição parisiense urbana. A faixa de terra foi dividida por ruas perpendiculares ao parque e subdividida em parcelas adequadas a edifícios de 50 a 100 apartamentos. Todos eles teriam de estar de acordo com o limite de altura (120 pés ou 36,6m) imposta pelo regulamento urbano de Paris e outras especificações arquiteturais, mas seriam construídos por arquitetos diferentes - em outras palavras, os edifícios seguiriam a abordagem que levou à Paris "hausmanniana". Por outro lado, Buffi escolheu desconstruir o bloco urbano parisiense clássico, criando um nova tipologia característica para este bairro.

Uma fachada contínua foi estabelecida no lado norte, não voltado para o parque, ao longo da Rue de Pommard, de acordo com o caráter urbano daquela rua. As ruas laterais para pedestres ligando a Rue de Pommard ao parque também deviam ser construídas, com um pequeno recuo para as plantas, a fim de dar essas ruas um caráter urbano bem definido e para marcar o limite entre a cidade e o parque.

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Vista de uma rua lateral ligando a Rue de Pommard e o Parque de Bercy

Buffi queria garantir que o maior número possível de apartamentos tivesse uma vista para o parque, e por isso decidiu colocar pátios abertos de frente para o parque. O resultado disto é que os locais onde os edifícios vêm ao encontro do parque, no canto de cada uma das ruas laterais, formam fortes elementos arquiteturais com fachadas estreitas e altas, aos quais Buffi se refere como "pavilhões".

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Casa Rustici, Milão.
A fim de manter uma forte coerência formal da fachada ao longo do parque, Buffi introduziu o elemento arquitetural mais característico, as varandas niveladas ao longo de toda a frente urbana do parque. Estas varandas não estão apenas onde há edifícios, mas também na frente dos pátios como terraços suspensos. O efeito é muito reminiscente da Casa Rustici de Pietro Lingeri e Giuseppe Terragni em Milão, mas estendida ao longo dos cerca de 500 metros da frente urbana do parque de Bercy.

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A Front de Parc à direita e o Parque de Bercy à esquerda.
As diretrizes estabelecidas por Buffi foram estendidas a cores e materiais, bem como a layouts e elementos arquitetônicos. No entanto, ainda houve espaço para alguma diversidade. A forte horizontalidade pré-definida, semelhante às cornijas corridas (running cornices) nos edifícios "haussmanianos", criou um sentido de unidade, mas restando claro o trabalho de diversos designers num mesmo quadro. Arquiteturalmente, o equilíbrio da diversidade e da unidade é a característica mais marcante e bem sucedida da operação.

O programa urbano é diversificado, desenvolvido com o objetivo de criar um bairro realmente vivo e bastante autônomo. Há 1.400 apartamentos, incluindo 350 unidades não subsidiadas, 400 parcialmente subsidiados, e 640 subsidiados. Os pisos térreos incluem lojas, cafés e alguns escritórios. Há toda uma série de outras amenidades no bairro: duas pré-escolas, duas creches, um posto policial, vários hotéis, uma escola de panificação e a Cinemateca Francesa (o antigo Centro Americano desenhado por Frank Gehry).

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A Front de Parc vista do parque
O local inclui um conjunto notável de edifícios históricos conhecidos como a Cour Saint-Émilion. Estes foram reabilitados pelos arquitetos Denis Valode e Pistre Jean e transformados por um empreendedor privado como um centro comercial ao ar-livre com uma rua pedestre central repleta de restaurantes e cafés. A Cour Saint-Émilion acabou por ser um sucesso extraordinário, sempre cheia de gente, apesar de ser um local que não parecia tão central. Um complexo de cinema foi construído na ponta leste desta área.

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A Cour Saint-Émilion
A única parte da operação Bercy que falhou foi a parte desenvolvida exclusivamente pelo setor privado, no extremo leste do local. Catorze hectares haviam sido reservados para atividades de negócios relacionadas com comida e bebida, em parte para atender à indústria deslocada pelo fechamento dos armazéns, em parte para assegurar que haveria atividade econômica e empregos na na área (tendo em mente que isso foi bem antes de ficar claro que a Cour Saint-Émilion seria construída, quanto mais que viria a ser um sucesso). O projeto foi ganho por um consórcio formado pelas grandes empresas francesas BNP, Suez e Accord. Elas selecionaram o arquiteto Henri La Fonta, que trabalhou de perto com empreendimentos de bancos e responsável por parte da terrível arquitetura corporativa em toda a região de Paris. O edifício na área de Bercy é uma atrocidade arquitetural que também tem sido mal sucedido comercialmente. Devido ao seu grande comprimento, funciona atualmente como uma barreira ao desenvolvimento urbano à área vizinha de Porte de Bercy.

É verdade que o novo bairro de Bercy levou algum tempo para deslanchar. Ele começou a se integrar de fato 
somente em 1998 , quando a linha 14 do metrô de Paris foi inaugurada. A linha 14 é totalmente automatizada, sem motorista. Ela pára em cada extremidade do novo bairro de Bercy, nas estações "Bercy" e "Cour Saint-Émilion". Com a abertura desta linha, os primeiros residentes que haviam se mudado quando a área era quase inacessível de repente se viram a menos de 5 minutos da parada de Châtelet, no coração de Paris, com acesso direto e rápido a duas estações ferroviárias principais. Em 2006, uma ponte para pedestres foi construída através do Sena, ligando o bairro de Bercy ao bairro da Margem Esquerda, em franco desenvolvimento. A ponte para pedestres é um projeto da empresa franco-austríaca de design de Dietmar Feichtinger.

Bercy é agora um bairro ativo e animado, um centro de vida para milhares de pessoas. Nas palavras de parisienses comuns, a razão por que é tão bem-sucedido é que ele é uma vizinhança real, onde você pode fazer várias coisas diferentes. Por exemplo, você pode ir às compras no Cour Saint-Émilion e depois deixar seus filhos correrem no parque. Ou você pode ir ver um filme e fazer uma caminhada, ou para uma visita ao Musée des Arts Forains (Museu de Artes Estrangeiras), um museu surpreendente que foi aberto nos edifícios históricos. O bairro de Bercy agora é visto como bastante central, especialmente com o desenvolvimento das áreas ao sudoeste, na margem esquerda – e em breve a leste em Porte de Bercy.

O novo bairro de Bercy é um exemplo de programação urbana cuidadosa, mantendo o equilíbrio entre usos que são tecidos firmemente lado-a-lado. É também um exemplo de que princípios sensatos de arquitetura e desenho urbano podem criar unidade e qualidade do meio ambiente sem ser autoritário com os diferentes construtores, e, finalmente, criar um bairro com uma qualidade espacial que as pessoas reconhecem e apreciam.
Traduzido livremente a partir de <http://stephanekirkland.com/the-new-bercy-neighborhood>

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