segunda-feira, 26 de outubro de 2015

BACALHAU ESPIRITUAL

. A verdadeira Receita


Insurjo-me frequentemente pela designação menos correcta que é atribuída a alguns pratos. Por muito que custe aos improvisadores de culinária, há receitas que têm princípio, e uma história. A sua história.
Não temos o hábito de considerar uma criação nova como algo sujeito a um registo, a uma patente. O problema é que essa criação culinária é muitas vezes alvo de grande sucesso e as execuções nem sempre são as correctas ou de acordo com a receita original. Isto não é pecado só de nós, portugueses. Viajo um pouco pelo Mundo e tenho encontrado vários surpresas e, lamentavelmente, quase sempre pela negativa. 


Mas vejamos o que aconteceu ao nosso Bacalhau Espiritual com que comecei o texto. O Bacalhau Espiritual terá começado pouco tempo antes do “Carpaccio”. Estamos em 1947 e em preparativos de abertura de um restaurante de luxo instalado nas antigas cozinhas do Palácio Nacional de Queluz e que se iria chamar “Cozinha Velha”. A sua primeira concessionária foi a Condessa Almeida Araújo, que se preocupou em ter um cardápio bem estruturado com cozinha nacional mas também com pratos mais sofisticados que fizessem jus ao local onde está instalado o restaurante. A construção é identificada, muito, pela arquitectura e vivência real no século XVIII. Época gloriosa também para a doçaria conventual produzida em conventos femininos. Não vou aqui alongar-me sobre as razões que levaram apenas os conventos femininos a  especializarem-se nesta actividade doceira. Essas razões serão objecto de uma próxima crónica.
A Condessa Almeida Araújo, epicurista, e consciente da tarefa que teria de desenvolver para um restaurante que se pretendia, e foi, emblemático, viajou por França visitando restaurantes de elite gastronómica. Num deles apreciou particularmente uma receita de “Brandade Chaude de Morue” cuja leveza e textura, associada ao facto de utilizar um produto português, ou connosco associado, lhe mereceu especial atenção. E pediu a receita a pensar na “Cozinha Velha”. Claro que, naquele tempo, não lhe deram a receita mas venderam-lha. Não sei quanto custou. Estávamos ainda no tempo do segredo das receitas, apesar da distância geográfica onde ela iria ser confeccionada. O segredo, para mim, nunca está no documento das quantidades e modo de confecção. O segredo está muito mais nas mãos do executor, nos gestos e nos tempos. Nenhum músico se incomoda com a publicação da sua música. A diferença está sempre no intérprete.

bacespiritual

Aproveito para saudar, uma vez mais, a equipa de Maria Proença e Maria de Lourdes Modesto, pela realização invulgar do filme “Os Gestos dos Sabores”. Queremos mais. Fazem-nos falta mais registos deste tipo.
Mas vamos ao Bacalhau Espiritual. À primeira vista pode parecer-nos um soufflé, que não é. Depois metemos o garfo e sentimos como que um creme leve. Depois descemos mais o garfo e temos um creme mais consistente. Ora é esta diferença de espessura do creme que faz do Bacalhau Espiritual uma especialidade tão delicada.
Vejamos como se deve fazer para parecer o autêntico: passa-se na máquina de picar a mesma quantidade de bacalhau (já demolhado), em cru, cebolas e cenouras. Evidentemente que ao bacalhau foram retiradas as espinhas e a pele. Encontrar uma espinha será uma acusação grave à cozinha. Depois leva-se uma frigideira ao lume com azeite, bastante manteiga e um pouco de banha. Coloca-se a cebola e a cenoura. Quando a cebola ficar transparente junta-se o bacalhau, mexe-se bem e retira-se do lume. Adiciona-se um pouco de pão previamente embebido em leite e escorrido, e volta a mexer-se muito bem. À parte confecciona-se molho Bechamel em quantidade generosa. Metade do nosso Bechamel junta-se ao bacalhau e envolve-se muito bem. Barra-se um prato alto, de ir ao forno, com manteiga. Coloca-se a nossa massa de bacalhau. Depois sobre a massa coloca-se a outra metade do Bechamel e polvilha-se com queijo Parmesão e pão ralado, em quantidades iguais, e ainda colocam-se umas nozes de manteiga. Vai ao forno durante cerca de vinte minutos.
Descrevi a receita sem ter colocado as quantidades. Não me parece correcto desvendar um “segredo” de um estabelecimento que criou esta receita. Informo, no entanto, que de todas as receitas que vi publicadas, a mais correcta encontra-se no livro “Tesouros da Cozinha Tradicional Portuguesa”, com textos de Maria Emília Cancella de Abreu e editado pela primeira vez em 1984 pelas Selecções do Reader’s Digest.
A receita parece simples. O especial desta especialidade está na laboração delicada e na mistura do molho Bechamel. Por isso o Bacalhau Espiritual tem duas texturas ou duas densidades da massa. Não é, pois, fácil servir alguns pratos com esta designação.
Muitas vezes o que me servem não é seguramente um “Bacalhau Espiritual”. Porque não lhe chamam simplesmente “Empadão de Bacalhau”? É que, o que servem muitas vezes, é bom, mas não é “Bacalhau Espiritual”. Até para copiar é preciso ter habilidade. Portanto, quando não puderem servir a receita de acordo com os “cânones” correspondentes, o melhor é chamar-lhe outra coisa.
Poderia aqui enumerar exemplos de outras receitas. É, possivelmente, difícil passar a mensagem que cada receita tem o seu ritual de confecção, o seu modelo, e que é único. Quando se usa uma apelação para colher dividendos rápidos, mais tarde colhem-se dissabores.
Pois esta crónica foi escrita na sequência de sugestão do Chefe de Mesa para o prato do dia. Disse-lhe que queria o Bacalhau Espiritual para ter oportunidade de reclamar no final. Como me conhecem bem, tive que insistir ferozmente para comer o prato do dia. Claro que o que me serviram não era Bacalhau Espiritual mas um bom Empadão de Bacalhau. Os que me conhecem também sabem que as minhas reclamações não têm o mesmo significado dos consumidores em geral. Primeiro só reclamo quando sei que o estabelecimento pode corrigir. Também sabem que tenho ajudado alguns a encontrar soluções. Na minha vida de trabalho aprendi que a reclamação é um instrumento que nos ajuda a melhorar o serviço, a prestação. Só reclamo nos estabelecimentos onde penso voltar. Nos outros faço a papel do cliente simpático que não reclama mas que não volta. Reclamar não é usar o Livro de Reclamações. Os bons empresários apreciam os gestos dos clientes para melhorar o serviço.
BOM APETITE

© Virgílio Nogueiro Gomes

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